Em Mianmar, antiga Birmânia, a internet é o Facebook para muitos dos 18 milhões de usuários da rede social naquele país. A partir dessa relação de confiança, de perfis falsos e mentiras, o exército birmanês converteu a empresa norte-americana em arma de alcance massivo e perpetuou genocídio e limpeza étnica – cujos indícios são reconhecidos pela Organização das Nações Unidas (ONU) – contra a minoria muçulmana rohingya, relata o jornal The New York Times.
Ao longo de cinco anos, informa o jornal norte-americano, um contingente de quase mil militares usou perfis falsos e mentiras para espalhar ódio contra os rohingyas, incitando assassinatos, violações e a maior migração do século XXI, de quase 700 mil pessoas, segundo segundo ex-oficiais, pesquisadores e autoridades civis do país.
Trabalhando em turnos em bases instaladas secretamente nas colinas perto da capital política de Mianmar, Naipyido, os militares se fizeram passar por fãs de celebridades e de heróis nacionais, a partir de contas fictícias. Também criaram perfis e páginas fraudulentas de figuras famosas. Conquistaram audiência e, em seguida, passaram a inundar o Facebook com mensagens de ódio – incluindo imagens mórbidas e obscenas, notícias falsas e postagens inflamatórias –, quase sempre contra os rohingyas.
Divisão, vulnerabilidade e medo
No Facebook, as centenas de militares disseminavam o conteúdo, calavam os críticos e alimentavam discussões entre comentaristas para instigar as pessoas, diz o The New York Times. Muitas vezes, postavam fotos falsificadas de cadáveres que diziam ser prova de massacres cometidos pelos rohingyas. Houve acusações infundadas de estupros praticados por muçulmanos e inúmeras mensagens afirmando que o islamismo representa ameaça mundial ao budismo.
A farsa organizada chegou ao ápice em 2017. Em setembro daquele ano, em meio às lembranças ao ataque às torres do World Trade Center (WTC), em Nova York (EUA), o departamento de inteligência militar espalhou rumores em grupos do Facebook com muitos seguidores alegando que o país sofreria "ataques jihadistas". Ao mesmo tempo, os grupos com seguidores muçulmanos receberam uma mensagem diferente, sugerindo que monges budistas nacionalistas estavam organizando protestos contra eles.
O objetivo da campanha, que deixou o país de prontidão, era gerar sentimentos generalizados de vulnerabilidade e medo que só poderiam ser solucionados com a proteção dos militares, disseram pesquisadores que acompanharam a tática.
Ação tardia
O Facebook admitiu que demorou para agir em Mianmar e, em agosto, confirmou muitos dos detalhes sobre campanha de ódio conduzida por militares. O chefe de segurança cibernética da rede social, Nathaniel Gleicher, disse que encontrou "tentativas claras e deliberadas de disfarçadamente disseminar propaganda que era diretamente ligada aos militares de Mianmar". Naquele mês a empresa também desativou as contas oficiais de integrantes do alto escalão do exército birmanês.
Na última segunda-feira (15), diante de perguntas formuladas pelo The New York Times, o Facebook disse que fechou diversas contas que supostamente eram dedicadas a entretenimento, mas na verdade estavam ligadas aos militares. Essas contas tinham 1,3 milhão de seguidores. "Descobrimos que essas páginas aparentemente independentes de entretenimento, beleza e informações estavam ligadas aos militares de Mianmar", disse a companhia em um comunicado.
A frente de propaganda odiosa do exército birmanês é, de acordo com o jornal norte-americano, um dos exemplos mais claros de como um governo autoritário aproveita as redes sociais contra de seus próprios cidadãos.
ANJ