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Justiça e Direito
Quarta, 21 de março de 2018, 17h03

Discriminação racial ainda é realidade em Cuiabá


Até bem pouco tempo, há cerca de 50 anos, as pessoas negras eram tratadas como objetos, despojadas de direitos humanos e dignidade, no regime da escravidão legalizada. Hoje (21 de março), Dia Internacional contra a Discriminação Racial, quanto se avançou nos direitos das pessoas negras e no respeito a elas? Quais resquícios ainda restam dessa época?

É possível constatar a “coisificação” de seres humanos em processos judiciais arquivados no Fórum de Cuiabá datados do século XIX. Um desses exemplos é uma ação judicial de protesto por compra de dois escravos “sem condições para o serviço”, de 1868, cujo autor recorreu ao Judiciário mato-grossense em busca da devolução dos escravos após a compra, pois eles apresentavam “moléstia incurável”.

“Diz Francisco Dias Leite, morador na freguesia de Santo Antonio do Rio Abaixo, que tendo comprado em 14 de setembro próximo passado de José Serafim Borba dois escravos de nomes Manoel e Barbara conforme prova com o documento (...) não esteja satisfeito com os ditos escravos, visto sofrerem estes de moléstias incuráveis que impossibilitam quase que completamente de todo e qualquer serviço e por que semelhante se encontra em direito a ser nula não só pela carência de escritura pública como também por ter sido esta efetuada de modo que não abone a boa fé do vendedor. Vem o suplicante protestar contra ela e requerer que tomado o seu produto por termo se sirva mandar internar ao suplicado entregando-se o mesmo para fazer uso que lhe convier”.

Também no arquivo do Fórum de Cuiabá encontra-se um processo de 1879 que trata do inventário de um alferes – cargo da carreira militar à época – que deixou em testamento a relação de todos os bens a serem herdados pelos filhos, incluindo 15 escravos.

Nos autos do processo consta a relação dos escravos e a descrição de cada um com a cor, idade, estado civil, filiação, aptidão ao trabalho, profissão e observações gerais, tais como a origem, se foi comprado ou era filho de outros escravos.

“Miguel, africano, de sessenta e dois anos de idade, matriculado com o nº 2617 da matrícula geral do município em 20 de junho de 1872, avaliado por quatrocentos mil réis”, traz a descrição do escravo.

“Francisco, crioulo, vinte e seis anos de idade, (...) sofrendo de princípio de hérnia, avaliado e libertado condicionalmente neste ato pelo herdeiro Evaristo Moreira da Silva, pela quantia de um conto e duzentos mil réis”, descreve a situação de outro escravo, que foi liberto no testamento em virtude de sua doença.

Logo em seguida no inventário, estão os demais itens a serem repartidos entre os sete herdeiros, como propriedades, animais, objetos domésticos, ferramentas e até itens peculiares, como uma dentadura de ouro.

Retornando ao dia de hoje, 130 anos após a abolição da escravatura no Brasil, muitos resquícios daquela época ainda persistem, mesmo em Mato Grosso, que tem 60% da população negra, conforme dados do Censo de 2010, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O freelancer de idiomas Fabiano Souza, 37 anos, afirma que vive situações de discriminação racial diariamente em seu cotidiano em Cuiabá. Há apenas um mês, relembra um caso que lhe causou muita angústia, no qual um amigo da família o chamou de "urubu” e “assombração” em um bar perto de sua casa.

Inicialmente, Fabiano ignorou as ofensas e se portou como se não fossem dirigidas a ele. Após a insistência do ofensor, ele decidiu se posicionar perante todos os presentes dizendo que aquela pessoa não poderia tratar ninguém como um animal, utilizando adjetivos que não fazem parte do ser humano, julgando e ofendendo os outros pela aparência.

“Creio que temos o direito de nos defender e de maneira nenhuma aceitar qualquer ofensa verbal pelo motivo da minha cor da pele. Eu adquiri essa defesa com o decorrer dos anos, por presenciar no meu dia a dia ações racistas, então hoje eu defendo verbalmente, sem agressão, sendo respeitoso com a pessoa, mesmo que ela não tenha sido respeitosa comigo. Não é possível aceitar mais isso. Para mim é inadmissível”, enfatiza.

Na opinião do tradutor, as pessoas negras ainda são tratadas como coisas. “Ele é um produto em que é ladrão, é um bandido, é um produto como mendigo. São situações do dia a dia que são muito constrangedoras. Lá atrás, os negros eram produtos de fazer as coisas obrigados, forçados, coisas braçais, algemados. Esse produto veio conosco com adjetivos”.

Para Fabiano, ser negro é motivo de orgulho, apesar de a sociedade sempre demonstrar o contrário. “Eu me identifico como um negro de raiz mesmo, gosto da minha cor, da minha família, do que essa cor traz para a sociedade brasileira. A minha posição é que precisamos entender melhor e aceitar cada ser humano sem preconceito, sem injúrias. Progresso há sempre, mas eu acho que o Brasil ainda caminha muito pouco para combater o racismo e a escravidão moderna. Houve mudanças, mas precisamos mudar muito mais. Estamos apenas começando a engatinhar”.
 




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