Cuiabá | MT 27/04/2024
Paul Ferreira
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Quarta, 31 de agosto de 2022, 15h42

As novas relações de trabalho em um contexto pós-pandemia

Dadas as crescentes preocupações sobre um possível declínio na produtividade organizacional, não é totalmente surpreendente que algumas empresas e suas lideranças voltem a ceder às forças que as mantinham no status quo.

No filme "Le Guépard”[1], do diretor Luchino Visconti, tem uma frase marcante que tem estruturado, infelizmente, muito do meu pensamento sobre as relações de trabalho no pôs-pandemia: “Tudo deve mudar para que nada mude”.

Se esta afirmação não ficou clara ou intuitiva o suficiente, então considere os seguintes casos:

- Empregadores que realizam dispensas de colaboradores por WhatsApp ou outros aplicativos;[2]

- Elon Musk enviando um ultimato a seus funcionários da Tesla por e-mail, no qual exige que os funcionários retornem ao trabalho presencial;[3]

- A Apple afirmando que sua cultura sempre enfatizou fortemente as reuniões presenciais e, portanto, continua comprometida com o trabalho presencial;

- O Google considerando indexar os salários de seus funcionários na modalidade de trabalho remoto em tempo integral ao custo de vida no local onde residem. Entre grandes metrópoles e cidades suburbanas, a diferença poderia resultar em um corte de salário de até 25%;[4]

- As empresas estão recorrendo cada vez mais a ferramentas de monitoramento de computador avaliando as teclas digitadas ou o tempo gasto ocioso e assim deduzindo a produtividade e o desempenho dos funcionários...[5]

O ponto comum destas iniciativas é a falta de consideração estratégica para um dos principais benefícios da pandemia: o aprendizado permitido pelo fato que trabalhadores e empresas foram forçados a experimentar, em massa, com novas formas de trabalhar e gerenciar. Por que isso importa? Primeiro, ao longo da história, a humanidade aprendeu muito com desastres, guerras, ruínas financeiras – e pandemias. A literatura acadêmica documentou esse processo em campos tão diversos quanto engenharia, redução de risco, gestão e estudos urbanos. Segundo, enquanto a experimentação pode consumir tempo e recursos, também sabemos que ela incentiva a inovação e pode ser uma atividade altamente produtiva quando seus principais aprendizados são analisados de forma consistente, promovem o diálogo aberto e contínuo em toda a organização e se traduzem em tomada de decisão e mudança organizacional. Por fim, a pandemia ajudou trabalhadores e organizações a superar a inércia relacionada aos custos de experimentação, bem como a inércia decorrente de inúmeros vieses negativos sobre as relações de trabalho.

Dadas as crescentes preocupações sobre um possível declínio na produtividade organizacional, a inovação, a motivação e o engajamento dos funcionários e a cultura da empresa, não é totalmente surpreendente que algumas empresas e suas lideranças voltem a ceder às forças que as mantinham no status quo, ou pelo menos tenham grandes dificuldades em encontrar um equilíbrio entre as demandas e necessidades de curto prazo do negócio e as (novas) preferências e formas de trabalhar de seus funcionários. Mas antes de reestabelecer modelos mentais e práticas de gestão anteriores como se nada tivesse sido aprendido, os líderes devem ter três coisas em mente ao desenvolver planos para o futuro das relações de trabalho.

Primeiro, uma das maiores questões em relação a uma mudança persistente para trabalhar em casa, ou mais geralmente numa modalidade remota, é se os trabalhadores são mais produtivos do que no escritório. Embora a maioria dos estudos se baseie em medidas auto-relatadas, existe um consenso de que os trabalhadores tendem a ser mais produtivos na modalidade remota. Além disso, as taxas de atrito foram reduzidas em 35% e melhoraram as pontuações de satisfação no trabalho, destacando que os funcionários valorizam o trabalho em casa no equivalente a cerca de 4% a 8% de aumento salarial.

Segundo, funcionários clamam por ter flexibilidade (temporal e geográfica) em torno de onde trabalham e como trabalham. As políticas de trabalho remoto são um meio cada vez mais comum de conceder flexibilidade temporal aos trabalhadores, concedendo aos indivíduos mais controle sobre as horas em que realizam seu trabalho. Assim, um estudo recente internacional mostrou que a modalidade de trabalho remoto reduziu as horas trabalhadas em cerca de 80 minutos nos dias de casa, mas aumentou nos outros dias de trabalho (no escritório) e no fim de semana em cerca de 30 minutos no total, destacando como o trabalho em casa altera a estrutura da semana de trabalho.

Além disso, o experimento pandêmico foi além, eliminando o vínculo tradicional entre a geografia da casa e a localização da empresa, resultando em flexibilidade geográfica, na qual um trabalhador pode permanecer empregado em uma empresa sem precisar morar na cidade ou pais onde a empresa está localizada. No caso do “Work From Anywhere”, os empregadores cedem aos trabalhadores o controle da geografia em que escolhem viver, além de ceder a flexibilidade temporal proporcionada pelo trabalho remoto. Estudos revelam que a flexibilidade geográfica também resultou em um aumento de 4,4% na produção dos funcionários, sem aumento no retrabalho.

Por último, mas mais importante, os funcionários valorizaram práticas de gestão baseadas em maior grau de confiança. A pandemia conferiu aos gestores a oportunidade de fazer algo que deveriam ter feito há muito tempo: proporcionar às pessoas maior controle sobre seu próprio trabalho, maior autonomia no planejamento e realização de suas principais tarefas, bem como poder de decisão e responsabilidades acrescidas – em outras palavras, tratá-las como adultos conscientes e responsáveis.

Ainda que o microgerenciamento continue uma prática comum, em particular no Brasil, neste contexto de incerteza, de distanciamento físico e de necessidade de tomada de decisão mais rápida, um número crescente de empresas abriu mão de algum controle, negociou acordos e mediu a performance mais a partir das entregas e menos do controle de tempo. Ou seja, foram desenvolvidos e estabelecidos mecanismos que tenham a confiança como paradigma.

Além de reduzir a sensação de liberdade tão crucial para o bem-estar e o engajamento dos funcionários, a supervisão estrita afeta a confiança entre os indivíduos e impacta negativamente o funcionamento da organização. Estudos demonstram que, em comparação com pessoas em empresas de baixa confiança, as pessoas em empresas de alta confiança relatam 74% menos em estresse, 106% mais em energia no trabalho, 13% menos em dias de licença médica e 40% menos em esgotamento.

Como será a realidade das novas relações de trabalho? Por que o que encontraremos do outro lado será diferente do normal dos últimos anos? Minha convicção desde o início é que não avançaríamos para um novo normal caracterizado por uma nova ordem econômica e social global. Mas também não concordo que podemos simplesmente voltar ao que éramos. Acho fundamental que trabalhadores e sobretudo empresas mudem seu comportamento à luz do que aprenderam durante a pandemia. Um aprendizado central (infelizmente não novo) é que os funcionários estão perseguindo seus propósitos, o que se resume no contexto organizacional a duas dimensões principais: ter um forte senso de significado e impacto de seu trabalho. Uma das práticas de gestão mais efetivas para conseguir endereçar esta questão, é garantir que o processo de tomada de decisão seja descentralizado e feito localmente. Um benefício colateral disso é que, na verdade, nos tornará mais protagonistas, além de nos tornarmos seres humanos mais completos e interessantes.

[1] Adaptado no cinema do livro “O Leopardo”, de Giuseppe Tomasi di Lampedusa

[2] https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2022/07/27/medico-e-demitido-via-whatsapp-horrivel-e-desumano.htm

[3] https://valorinveste.globo.com/mercados/renda-variavel/empresas/noticia/...

[4] https://www.cnnbrasil.com.br/business/funcionarios-do-google-em-home-off...

[5] https://www.theguardian.com/technology/2022/apr/27/remote-work-software-...

Paul Ferreira é professor em tempo integral de Estratégica e Liderança na Fundação Getulio Vargas (FGV EAESP). É diretor do Mestrado Executivo em Administração (MPA) da FGV EAESP bem como vice-diretor do Núcleo de Estudos em Organizações e Pessoas (NEOP). Desde 2020, é colunista do MIT Sloan Management Review Brasil. Ele é um pesquisador visitante permanente na Universidade de St. Gallen (Suíça).

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